quinta-feira, 15 de março de 2018

Discussão sobre gênero

Em agosto de 2016, a médica estadunidense, Michelle Cretella, presidente do American College of Pediatricians (ACPeds) (Associação Americana de Pediatras), publicou relevante estudo de revisão da literatura científica relacionada à Disforia de Gênero (DG), termo utilizado para indicar o sofrimento psicológico e emocional decorrentes do conflito entre a identidade de gênero e o sexo biológico. A partir da publicação da ACPeds foram definidos protocolos médicos de atendimento aos portadores desta condição, sobretudo crianças e adolescentes.1 Doutora Cretella resume em poucas palavras a impropriedade da denominação “ideologia de gênero” e os conceitos que lhe são usualmente agregados: “O sexo é determinado pelo nosso DNA no momento da concepção, e está em cada célula do nosso corpo. Isso se resume aos cromossomos: se uma pessoa tem um cromossomo Y, é um menino; se não tem, é uma menina”.2

O termo “ideologia de gênero” passou a ser de uso comum, mesmo considerando a impropriedade das ideias e das posições radicais da ideologia serem conduzidas às escolas para debates e posições consideradas educativas. Basicamente, a ideologia de gênero consiste na afirmação de que os seres humanos nascem iguais porque a definição de masculino e de feminino é mero resultado histórico-cultural, desenvolvido pela sociedade. Os ideólogos desta posição não encontram respaldo científico e entram em rota de colisão com princípios éticos da prática médica, ainda que justifiquem suas posições como uma forma de evitar o preconceito, a homofobia e a violência contra as minorias não heterossexuais. Para os defensores da ideologia de gênero, não existem apenas os gêneros masculino e feminino, mas um espectro que pode ser livremente escolhido pelo indivíduo até que ele defina a qual gênero prefira se manifestar na sociedade.

Em termos biológicos e genéticos, contudo, esta afirmação é equivocada e pode gerar graves problemas: nascemos com um sexo biológico definido pelos cromossomos X e Y, que são marcadores genéticos configurados aos pares, na forma de XY ou XX e que representam homens e mulheres, respectivamente.3 A Ciência explica claramente e sem qualquer margem de dúvida, que a sexualidade humana é binária, surgida evolutivamente com o propósito de reprodução, sobrevivência e manutenção da espécie Homo sapiens.

Para a Doutrina Espírita, somos Espíritos, assim como para a Ciência pertencemos à espécie humana (Homo sapiens = homem sábio), surgida com a humanização do princípio inteligente, independentemente do plano de vida em que estejamos situados: o físico ou o espiritual. Os Espíritos reencarnados possuem um corpo físico, construído a partir do períspirito que, desde o momento da fecundação, já define o seu sexo biológico. Neste sentido, as inúmeras reencarnações permitem ao Espírito renascer em um corpo masculino ou feminino como parte do processo de aprendizagem espiritual. Por este motivo, quando Allan Kardec perguntou aos orientadores da Codificação espírita (O livro dos espíritos, questão 202): Quando errante [desencarnado], que prefere o Espírito: encarnar no corpo de um homem ou no de uma mulher? A resposta transmitida pelos orientadores espirituais é objetiva e muito esclarecedora: “Isto pouco lhe importa. Vai depender das provas por que haja de passar.”.4

Sendo assim, a opção de renascer com sexo masculino ou feminino reflete apenas necessidades evolutivas, geralmente vinculadas aos  mecanismos da Lei de Causa e Efeito. Vale, pois, enfatizar: ninguém nasce com um gênero. Sexo biológico é aquele  […] com o qual a pessoa nasce e define o gênero que lhe é socialmente  atribuído  desde o nascimento. Se nasce com genitália masculina, o gênero masculino é atribuído; se nasce com genitália feminina, o gênero [é] feminino; ou se com genitália ambígua ou indeterminada, o gênero intersexual.5

A rigor, os Espíritos desencarnados não têm um sexo determinante. Este aparece no corpo físico, com a reencarnação, segundo este esclarecimento registrado por Kardec:

Os Espíritos encarnam como homens ou como mulheres, porque não têm sexo. Como devem progredir em tudo, cada sexo, como cada posição social, lhes oferece provações, deveres e novas oportunidades de adquirirem experiência. Aquele que fosse sempre homem só saberia o que sabem os homens.6

Por outro lado, sabemos que há desencarnados que vivem como se estivessem encarnados, agindo como homem ou mulher, alimentando-se das sensações da prática sexual em que se envolviam quando encarnados. Manuel Philomeno de Miranda recorda no livro Sexo e consciência que As Leis da Vida permitem que o Espírito utilize variados perfis de programação reencarnatória. Desta forma, poderemos reencarnar diversas vezes em um só sexo para depois fazermos um longo percurso pelo sexo oposto ou reencarnar alternadamente em um ou outro sexo. […]

Estes conceitos evidenciam que a tarefa evolutiva de todos os Espíritos é desenvolver as qualidades psíquicas inerentes às duas polaridades.

Essas qualidades psíquicas predominantes em uma ou outra polaridade podem ser divididas em duas:

A Energia – a capacidade de enfrentamentos, a ousadia, a liderança, o destemor. Esta é uma característica predominantemente masculina.

O Amor – a capacidade de acolhimento, a doçura, a compreensão, a sensibilidade. Esta é uma característica predominantemente feminina.

Ambas as polaridades, quando plenamente desenvolvidas, levam à conquista da sabedoria.7

A consciência ou sensação de gênero é muito mais percepção sociológica e psicológica do que certeza biológica. Assim, a criança não nasce com consciência de si mesma como homem ou mulher. Esta conscientização se desenvolve ao longo do tempo e, como todos os processos de desenvolvimento, decorre das percepções subjetivas e íntimas, dos relacionamentos e das experiências vividas desde a infância. As pessoas que se identificam como “se sentindo como do sexo oposto” ou “em algum lugar no meio” não compõem um terceiro sexo. Permanecem homens ou mulheres, biologicamente falando, como concluem publicações acadêmicas de 2017, nos Estados Unidos.8

A identidade de gênero é de natureza psíquica e está relacionada às experiências reencarnatórias anteriores:

[…] é aquilo que a pessoa sente ser quando se olha no espelho ou quando reflete sobre si mesma. Pode ser masculina, feminina, ambas (ora uma, ora outra) ou nenhuma das duas, quando a pessoa não se identifica com nenhuma forma de masculinidade ou feminilidade de sua sociedade, ou quando se identifica com a expressão andrógina que mescla masculinidade e feminilidade […].9

O Espírito Emmanuel reforça essas ideias ao afirmar que a identidade de gênero tem raízes nas experiências pregressas do Espírito:

Ante os problemas do sexo, é forçoso lembrar que toda criatura traz os seus temas particulares, com referência ao assunto.

Atendendo à soma das qualidades adquiridas, na fieira das próprias reencarnações, o Espírito se revela, no plano físico, pelas tendências que registra nos recessos do ser, tipificando-se na condição de homem ou de mulher, conforme as tarefas que lhe cabe realizar. Além disso, a individualidade, muitas vezes, independentemente dos sinais morfológicos, encerra em si extensa problemática, em se tratando de vinculações e inclinações de caráter múltiplo.10

A identidade de gênero é entendida pela Ciência como uma condição psicológica que pode se manifestar desde a infância; de natureza inata, portanto. Comumente, porém, se observa mais nitidamente na pré-adolescência e na adolescência. Esta questão precisa ser analisada com firmes critérios éticos, a fim de que a discussão de gênero não se transforme em uma “ideologia de gênero”, de base ou evidências não científicas, as quais podem conduzir a ações drásticas, como por exemplo, o uso de hormônios e a esterilidade de jovens.11 Neste sentido, acadêmicos, médicos  e outros profissionais de saúde mental fazem constantes alertas, evocando o princípio ético básico da prática médica: “em primeiro lugar, nunca causar dano ou mal”.12 Tais estudiosos fazem este alerta a respeito do assunto:13

Estamos preocupados com a tendência atual de rapidamente diagnosticar e afirmar crianças e adolescentes como transgêneros, frequentemente direcionando-os para a transição médica. […]  Consideramos que cirurgias e/ou tratamentos hormonais desnecessários, cuja segurança a longo prazo ainda não foi comprovada, representam riscos importantes para crianças e adolescentes. Políticas públicas que incentivam – direta ou indiretamente – esse tratamento médico para crianças ou adolescentes que podem não ser capazes de avaliar seus riscos e benefícios são altamente suspeitos […].14

Com o surgimento de novas publicações sobre o assunto, é importante conhecer o significado de alguns conceitos:
Transgênero (trans): indivíduo que se identifica com um gênero diferente do sexo biológico ou de nascimento.

Transexual: indivíduo cuja identidade de gênero difere daquela designada no nascimento e que procura fazer a transição para o gênero oposto por meio de intervenção médica. Nos transexuais a redesignação transexual sexual ou apenas feminilização/masculinização, pode ser realizada por cirurgia (mudança de sexo) e/ou pela administração de hormônios.

Travestis (ou cross-dressers, do inglês): termo típico, muito utilizado nos países da América Latina, Espanha e Portugal, segundo o qual, a despeito da discussão do que se deva, efetivamente, ser denominado travesti, aceita-se o conceito de que são pessoas que, aparentemente, não sentem desconforto com sua genitália, gostam de se vestir de acordo com o gênero oposto e não sentem necessidade de fazer cirurgia de redesignação sexual.

Teoria Queers ou Genderqueers: trata-se da   teoria de que a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero dos indivíduos resultam de um constructo social e que, portanto, não existem papéis sexuais essencial ou biologicamente inscritos na natureza humana, antes formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais. É o que caracteriza a ideologia de gênero.

Há outras denominações, mas, em síntese, podemos assim nos exprimir, generalizando:

Os transgêneros são todas as condições que não se adequam ao gênero preestabelecido ou socialmente atribuído ao nascimento. A classificação trans é, portanto, um guarda-chuva que engloba os/as transexuais, travestis, intersexuais e as pessoas queers. Para algumas destas pessoas, a sua definição é clara, para outras é conflituosa ou incerta. Alguns, como os queers não gostam de ser rotulados ou definidos em nenhum conceito rígido.15

O Espírito Emmanuel discorre a respeito da temática, apontando pontos fundamentais que servem de roteiro para um estudo mais aprofundado:16

A reencarnação explica a homossexualidade/transexualidade:
A homossexualidade, também hoje chamada transexualidade, em alguns círculos da ciência […] não encontra explicação fundamental nos estudos psicológicos que tratam do assunto em bases materialistas, mas é perfeitamente compreensível à luz da reencarnação. (p. 83).

Aumento do número de transexuais no mundo, a despeito dos preconceitos existentes:
Observada a ocorrência, mais com os preconceitos da sociedade […], essa mesma ocorrência vai crescendo de intensidade e de extensão, com o próprio desenvolvimento da Humanidade, e o mundo vê, na atualidade, em todos os países, extensas comunidades de irmãos em experiência dessa espécie, somando milhões de homens e mulheres, solicitando atenção e respeito, em pé de igualdade ao respeito e à atenção devidos às criaturas heterossexuais. (p. 83).

Discussão de gênero: normalidade versus anormalidade:
A coletividade humana aprenderá, gradativamente, a compreender que os conceitos de normalidade e de anormalidade deixam a desejar quando se trate simplesmente de sinais morfológicos, para se erguerem como agentes mais elevados da definição da dignidade humana, uma vez que a individualidade, em si, exalta vida […]. (p. 84).

As tendências da sexualidade humana:
A vida espiritual pura e simples se rege por afinidades eletivas essenciais; no entanto, através de milênios e milênios, o Espírito passa por fileira imensa de reencarnações, ora em posição de feminilidade, ora em condições de masculinidade, o que sedimenta o fenômeno da bissexualidade, mais ou menos pronunciado, em quase todas as criaturas. (p. 84).

Sexualidade em trânsito:
Em face disso, a individualidade em trânsito, da experiência feminina para a masculina ou vice-versa, ao envergar o casulo físico, demonstrará fatalmente os traços da feminilidade em que terá estagiado por muitos séculos, em que pese ao corpo de formação masculina que o segregue, verificando-se o análogo processo com referência à mulher nas mesmas circunstâncias. (p. 84 e 85).

Justificativas para as tendências homossexuais:
O homem que abusou das faculdades genésicas, arruinando a existência de outras pessoas […], em muitos casos é induzido a buscar nova posição, no renascimento físico, em corpo morfologicamente feminino […] a mulher que agiu de igual modo é impulsionada à reencarnação em corpo morfologicamente masculino, com idênticos fins. […] (p. 85).

As tendências homossexuais não se restringem a expiação provacional:
[…] E, ainda, em muitos outros casos, Espíritos cultos e sensíveis, aspirando a realizar tarefas específicas na elevação de agrupamentos  humanos e, consequentemente, na elevação de si próprios, rogam dos instrutores da Vida Maior que os assistem a própria internação no campo físico, em vestimenta carnal oposta à estrutura psicológica pela qual transitoriamente se definem. […] (p. 85).

Em razão do preconceito existente na sociedade, das desinformações relacionadas ao assunto, aos equívocos e limitações da educação familiar e escolar, pessoas que apresentam dificuldades na identidade de gênero merecem ser acolhidas com amor e respeito, porque raras são aquelas que não apresentam algum grau de sofrimento psíquico ou de disforia de gênero, sobretudo devido às agressivas manifestações da transfobia:  preconceito, ódio e violência dirigida às pessoas transgêneras.

Ao final deste singelo estudo inserimos estas ponderações do saudoso Chico Xavier, como um guia de conduta espírita ante a questão discussão de gênero:
Acreditamos que o tempo e a compreensão humana traçarão normas sociais suscetíveis de tranquilizar quantos se vinculem a semelhante segmento da comunidade, assegurando-se-lhes a bênção do trabalho com o respeito devido a todos os filhos de Deus.

Até que isso se concretize, não vejo pessoalmente qualquer motivo para críticas destrutivas e sarcasmos incompreensíveis para com os nossos irmãos e irmãs portadores de tendências homossexuais, a nosso ver, claramente iguais às tendências heterossexuais que assinalam a maioria das criaturas humanas. Em minhas noções de dignidade do espírito, não consigo entender por que razão esse ou aquele preconceito social impedirá certo número de pessoas trabalhar e de serem úteis à vida comunitária, unicamente pelo fato de haverem trazido do berço características psíquicas ou fisiológicas diferentes da maioria.

Nunca vi mães e pais, conscientes da elevada missão que a Divina Previdência lhes delega, desprezarem um filho porque haja nascido cego ou mutilado. Seria humana e justa a nossa conduta em padrões de menosprezo e desconsideração, perante os nossos irmãos que nascem com dificuldades psicológicas?17

Artigo de Marta Antunes, publicado na revista Reformador, ano 136, nº 2268, em março de 2018.

REFERÊNCIAS:

1 CRETELLA, Michelle. Gender dysphoria in children and suppression of debate. https://www.renewalministries.net/ wordpress/tag/dr-michelle-cretella/ Artigo traduzido pela Gazeta do Povo https://nihilsubsolenovum.wordpress. com/2017/10/22/pediatras-e-a- ideologia-de-genero/ Acesso em: 7 dez. 2017.

2             .              .

3 Disponível em: http://especiais. gazetadopovo.com.br/ideologia- de-genero-estudo-do-american- college-of-pediatricians. Acesso em: 5 dez. 2017.

4 KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 3. imp. Brasília: FEB, 2016.

5 MOREIRA, Andrei. Transexualidades, sob a ótica do espírito imortal. Belo Horizonte: AME, 2017. cap. 1, p. 29 e 30.

6 KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 3. imp. Brasília: FEB, 2016. Comentário de Kardec à q. 202.

7 FRANCO, Divaldo Pereira. Sexo e consciência. (Org. Luiz Fernando Lopes). 1. ed. Salvador: LEAL, 2013. cap. 7 – Homossexualidade, it. Polaridades sexuais e reencarnação.

8 CRETELLA, Michelle. Gender dysphoria in children and suppression of debate. https://www.renewalministries.net/ wordpress/tag/dr-michelle-cretella/ Artigo traduzido pela Gazeta do Povo https://nihilsubsolenovum.wordpress. com/2017/10/22/pediatras-e-a- ideologia-de-genero/ Acesso em: 7 dez. 2017.

9 MOREIRA, Andrei. Transexualidades, sob a ótica do espírito imortal. Belo Horizonte: AME, 2017. cap. 1, p. 30.

10 XAVIER, Francisco C. Vida e sexo. Pelo Espírito Emmanuel. 27. ed. 3. imp. Brasília: FEB, 2016. cap. 1 – Em torno do sexo.

11CRETELLA,Michelle. Genderdysphoria in children and suppression of debate. https://www.renewalministries.net/ wordpress/tag/dr-michelle-cretella/ Artigo traduzido pela Gazeta do Povo https://nihilsubsolenovum.wordpress. com/2017/10/22/pediatras-e-a- ideologia-de-genero/ Acesso em: 7 dez. 2017.

12           .              .

13           .              .

14 YOUTH TRANS CRITICAL PROFESSIONALS. Professionals thinking critically about the youth transgender narrative. Disponível em: https:// youthtranscriticalprofessionals.org/ about. Acesso em: 22 dez. 2017.

15 MOREIRA, Andrei. Transexualidades, sob a ótica do espírito imortal. Belo Horizonte: AME, 2017. cap. 1, p. 34.

16 XAVIER, Francisco C. Vida e sexo. Pelo Espírito Emmanuel. 27. ed. 3. imp. Brasília: FEB, 2016, cap. 21 – Homossexualidade.

17 NOBRE, Marlene Rossi S. Lições de sabedoria: Chico Xavier nos 23 anos da folha espírita. 2. ed. São Paulo: FE, 1977. Pt. 6 – Sexo e responsabilidade: energia sexual, cap. 36 – Homossexualidade e conduta, p. 69.

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